22.11.2021

Afinal, ainda é possível pensar em planejamento tributário no Brasil?

Por Wellyngton Barella

Tratar de planejamento tributário é tratar de um tema espinhoso. O assunto sempre gera controvérsias, não se chegando a um consenso. Arriscamos dizer que isso não ocorre somente no Brasil, mas também no mundo todo.

Há uma grande tendência dos países em tentar coibir que os contribuintes evitem a tributação utilizando estruturas que, embora lícitas, são consideradas abusivas. O raciocínio é simples: serão consideradas abusivas, pelo direito, estruturas jurídicas empregadas em atos ou negócios que tenham como principal (ou único) objetivo reduzir ou eliminar tributos.

Contudo, há enorme dificuldade em regular a matéria, seja pelo lado social, seja pelo jurídico. O Estado, apoiado no princípio da igualdade e da capacidade contributiva, fundamenta a medida na busca pela realização da “justiça tributária” (se é que ela existe) e pelo controle da perda de arrecadação. De outra parte, os contribuintes refutam a ideia invocando a legalidade tributária e a segurança jurídica dos atos praticados, sem dizer o receio de ver a administração tributária com poderes excessivos para a prática de atos com base na discricionariedade dos seus agentes.

Exemplo dessa espécie de norma é a que existe na Lei Geral Tributária de Portugal, que determina que serão desconsiderados os negócios realizados que, com abuso de formas jurídicas, tenham “a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável […].”

A norma portuguesa demonstra de forma clara o objetivo da norma geral antielisiva. Trabalhando com conceitos como “abuso de forma jurídica”, “abuso de direito” e “falta de propósito econômico ou negocial”, a regra permite que a conduta legalmente praticada pelo contribuinte, com o objetivo de obter economia tributária, seja requalificada pela autoridade administrativa e enquadrada em hipótese tributária que aumente a carga fiscal. Ou seja, a conduta não é ilícita, mas será considerada ineficaz se o único propósito tenha sido economizar tributo.

Sendo o Brasil um país com enorme sede de tributar, a situação, aqui, não é diferente. Desde o advento do Código Tributário Nacional, promulgado em 1966, tenta-se conferir poderes à administração tributária para que possa desconsiderar estruturas jurídicas realizadas pelos contribuintes com o objetivo de obter economia tributária. Porém, todas as tentativas de se ter na legislação tributária nacional norma semelhante à acima citada restaram frustradas, pois esbarraram no Congresso Nacional.

Poderíamos dizer, então, que no ordenamento jurídico tributário brasileiro não existe uma norma geral antielisiva? Entendemos que sim. E, aqui, abrimos parênteses para dizer que a corrente em que essa opinião se esposa não é pacífica, pois há posicionamento doutrinário divergente. Então, por qual razão afirmamos inexistir, em nosso ordenamento, norma geral antielisiva?

Em que pese existirem inúmeras decisões dos Tribunais Administrativos desconsiderando planejamentos tributários lícitos praticados pelos contribuintes, fundamentadas no “abuso de direito e de forma jurídica” ou na “falta de propósito negocial”, não encontramos, em nossa legislação tributária, normas que contemplem referidas expressões e permitam a desconsideração do ato (ou negócio) realizado.

As expressões “abuso de direito e de forma jurídica” e “falta de propósito negocial”, ou estão em nossa legislação civil, ou sequer foram positivadas, restando importadas do direito estrangeiro que, na maioria das vezes, em nada se assemelha ao nosso. Seja por uma razão, seja por outra, pensamos que não poderiam embasar decisões em matéria de tributação, pois, se a responsável para disciplinar o assunto é a legislação tributária, é ela que deve ser aplicada.

Mas como se posiciona a legislação tributária sobre o assunto? O Código Tributário Nacional trata da desconsideração de atos praticados pelos contribuintes em dois artigos distintos.

Em seu artigo 149, inciso VII, estabelece que a autoridade administrativa poderá reavaliar atos ou negócios praticados pelo contribuinte quando ficar comprovado a existência de simulação para reduzir a carga tributária.

Temos simulação (i) quando os fatos relatados aparentarem transmitir direitos a pessoas diversas daquelas a quem realmente se confere ou transmite; (ii) quando os fatos contiverem declaração ou cláusula não verdadeira; ou (iii) quando os fatos estiverem suportados por instrumentos particulares com datas anterior ou posterior.

Na mesma linha, em seu artigo 116, parágrafo único, estabelece que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte quando comprovada a dissimulação da ocorrência do fato gerador do tributo.

A dissimulação ocorre quando há dois atos (ou negócios) relatados, em que o primeiro seria o “simulado”, ou seja, aquele realizado pelo contribuinte, e o segundo aquele construído pelo Fisco, sendo por ele considerado como “o verdadeiro”, pois seria o ato (ou negócio) “que o contribuinte pretendeu ocultar”. Em outras palavras, o ato (ou negócio) ocorrido foi o “descoberto” pelo Fisco e não o apresentado pelo contribuinte.

A regra contida no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional é, justamente, aquela que parte da doutrina considerada como sendo a norma geral antielisiva prevista em nosso ordenamento.

Guardado o devido respeito, não concordamos com essa corrente doutrinária, pois o dispositivo utiliza o vocábulo dissimulação, o que pressupõe a existência do dolo na conduta do contribuinte. Em outras palavras, se trata de norma que visa coibir a conduta ilícita praticada, qual seja, a de ocultar o fato considerado pelo Fisco como “verdadeiro”.

Por outro lado, como vimos acima, a norma geral antielisiva não se presta a coibir conduta ilícita, pois atua no campo do lícito. A conduta é requalificada não por ser ilícita, mas, sim, por ter, como principal (ou único) objetivo, a economia de tributos.

Desta forma, a regra do artigo 116 não pode ser considerada como uma norma geral antielisiva, tendo em vista que “abuso de direito e de forma jurídica” e “falta de propósito negocial” não podem servir de sustentação para a desconsideração de atos (ou negócios) praticados pelo contribuinte. Podem, tão somente, ser considerados como indícios de dissimulação, a qual, se provada, chamará a aplicação do referido dispositivo para que o ato (ou negócio) seja desconsiderado e requalificado como outro.

Assim, somente poderemos ter desconsideração de ato (ou negócio) do contribuinte, sustentada no argumento da substância (aquele ato ou negócio que Fisco entende ser o “verdadeiro”) sobre a forma (aquele ato ou negócio demonstrado pelo contribuinte), quando as provas levarem para a demonstração de conduta praticada com simulação ou dissimulação. Caso contrário, deverá permanecer a forma.

Num sistema jurídico rígido como o brasileiro, no qual o texto constitucional atribuiu competências tributárias limitadas à União, Estados e Municípios, bem como imprimiu legalidade estrita, as imposições tributárias são muito bem desenhadas.

Quando o legislador deseja, ele desenha o tipo tributário, dentro dos limites permitidos, e impede que o contribuinte realize o planejamento. Como exemplo, temos o regramento dos Preços de Transferência, no qual a legislação colocou travas na obtenção de resultados decorrentes de operações internacionais entre empresas ligadas.

Portanto, se determinada situação ficou “de fora” é porque o legislador assim optou. E, neste campo que ficou “de fora”, não há norma produzindo relação jurídica. Não havendo norma, não há incidência tributária.

Diante dessas pequenas considerações, ao refletirmos sobre a pergunta que intitula este artigo, pensamos que a resposta seja sim. O campo que ficou “de fora”, em que não há relação jurídica e, por consequência, incidência tributária, é exatamente onde o contribuinte poderá realizar o seu planejamento tributário, desde que, é claro, permaneça no campo da licitude.

Por fim, destacamos que o assunto está sob o crivo do Supremo Tribunal Federal. Nos referimos à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2446, quetramita desde o ano de 2001 e discute a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional.

Apesar de ter votado pela constitucionalidade do dispositivo, a Ministra relatora, Cármen Lúcia, entendeu que o mesmo não proíbe o planejamento tributário estruturado de forma lícita pelo contribuinte, se tratando, portanto, de norma que combate condutas tendentes a ocultar a ocorrência do fato gerador. Seguiram o voto da Relatora os Ministros Marco Aurélio Mello, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Luiz Fux.

Os Ministros Ricardo Lewandowisk e Alexandre de Moraes votaram pela inconstitucionalidade da norma, por entenderem que a desconsideração de atos e negócios jurídicos somente pode ser realizado por um magistrado togado. Ainda faltam votar os Ministros Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Nunes Marques.

Enfim, teremos que aguardar o posicionamento final do STF, mas, até o momento, o julgamento caminha favoravelmente aos contribuintes, que podem, e continuarão podendo, realizar o planejamento tributário dos seus negócios.

Wellyngton Barella é sócio da TMB Advogados, integrante do time Tributário, mestrando pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET.

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