03.10.2022

Aplicação da teoria da imprevisão em contratos de compra e venda de safra futura

Por Lucas Rampelotto em parceria com o Grupo de Estudos “Liga de Direito e Agronegócio”

De acordo com um estudo divulgado pela DATAGRO, 25,5% da produção estimada de oleaginosas da safra nacional de 2021/22 já está comprometida comercialmente. Diante desse fato, não restam dúvidas que a realização de contratos de compra e venda de safra futura é um instrumento muito prático no agronegócio brasileiro. 

André Rizzardi, em sua doutrina “Direito do Agronegócio”, entende que esse tipo de contrato se trata de “Contratos Aleatórios” porque a venda, nesses casos, é definitiva, já que se considera devido o preço mesmo que deixe de vir a existir a coisa, desde que haja previsão expressa da possibilidade de não vir a existir, ou de vir a existir em qualquer quantidade, ou de estar exposta a coisa a risco. Essas hipóteses são denominadas de venditio spei, que possuem, como um elemento integrante do contrato, a esperança de que, caso falhe, não o desfaz e, muito menos, desobriga o adquirente a satisfazer o preço condicionado. 

Os contratos aleatórios, então, são caracterizados por obrigações que só podem ser exigidas no futuro e cujos riscos da não ocorrência tenham sido assumidos pelo outro contratante, como preleciona o artigo 458 do Código Civil. Dessa forma, a incerteza está vinculada às vantagens procuradas pelas partes, seja na sua própria ocorrência, seja na extensão, duração ou individualização da parte que vai supri-la. 

Em decorrência da definição acima exposta, Pablo Stolze define três tipos de contratos aleatórios. São eles a) contrato de compra de coisa futura, com assunção de risco pela existência (emptio spei); b) contrato de compra de coisa futura, sem assunção de risco pela existência (emptio rei speratae) e c) contrato de compra de coisa presente, mas exposta a risco assumido pelo contratante. 

A matéria que nos interessa, neste momento, direciona-se à primeira espécie definida pelo doutrinador acima mencionado, uma vez que o contratante assume o risco de não vir a ganhar coisa alguma, deixando à “sorte” o resultado de sua contratação. É importante ressaltar que o termo “sorte” é utilizado no sentido de que a parte assume o risco do fato acontecer ou não, não sabendo, portanto, se terá um retorno patrimonial no contrato assumido. 

E justamente pelo risco de os contratos aleatórios estarem vinculados à vantagem de uma das partes é que essa modalidade difere-se dos contratos condicionados, tendo em vista que estes têm sua eficácia atrelada a ocorrência de um evento futuro e incerto. Como já visto acima, o plantio da safra é um evento certo e futuro, porém a sua existência e qualidade são os fatores que trazem riscos ao negócio jurídico bilateral! 

Todavia, ainda que o risco e a garantia da entrega do bem sejam parte do negócio jurídico, muito se discute acerca aplicação da teoria da imprevisão nesse modelo de contratação, no intuito de mitigar o princípio do pacta sunt servanda. Buscando a equalização das obrigações contratuais, o contratante prejudicado pode utilizar-se do artigo 478 do Código Civil, o qual prevê a aplicação dessa teoria, desde que, conforme acentua Silvio Rodrigues, observe os seguintes requisitos: que o contrato em questão tenha prestações continuadas ou diferidas, bem como exista algum evento superveniente que acarrete a modificação do cenário previsto para o momento do cumprimento da obrigação.

Diante desses pré-requisitos, cumpre destacar o cenário das baixas médias de produtividade decorrentes da “ferrugem asiática” no país, principalmente na safra 2001/2002. Conforme estudos da BASF, o fungo Phakopsora pachyrhizi atingiu mais da metade das lavouras de soja do estado do Paraná, fato que acarretou a perda de mais de 560 mil toneladas de grãos de soja, um prejuízo de mais de U$125.000.000,00 de dólares.

Como consequência, os produtos rurais acionaram o Poder Judiciário para reverem os contratos firmados anteriormente, já que ou não dispunham mais da quantidade fixada ou, devido à baixa oferta, houve a elevação considerável do preço da saca de soja. Diante desse cenário, o Colendo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em caso análogo, ao julgar a Apelação Cível 200000051510220001 entendeu, como fator determinante para revisão contratual, a praga como fator extraordinário e imprevisível, assim como a elevação abrupta do valor da soja, que atingiu patamares superiores a 100% do contrato inicialmente, como o desequilíbrio do negócio jurídico.

No entanto, posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu não ser compatível a aplicação da teoria da imprevisão. O ilustre Ministro Luís Felipe Salomão, ao julgar o Recurso Especial Cível nº 945166 GO, defendeu que a “ferrugem asiática” não é mais fato extraordinário e imprevisível, uma vez que doença atinge as plantações de soja no Brasil desde 2000. Em razão disso, não aplicou a teoria da revisão no contrato em questão e manteve o pactuado entre as partes.

Ainda, cumpre ressaltar também entendimento do referido ministro, em julgamento do Recurso Especial 849228 GO, acerca da variação do preço da saca de soja. Na oportunidade, entendeu a oscilação do preço como parte do negócio, tendo em vista a cotação da commoditie em moeda americana, o que impede a caraterização de um acontecimento extraordinário e imprevisível, o que torna inapta a aplicação da teoria da revisão. Por fim, caracteriza o evento como uma mera “percepção de um lucro aquém daquele que teria, caso a venda se aperfeiçoasse em momento futuro.”

Portanto, percebe-se que a flexibilização do contrato de compra e venda de safra futura, com base na teoria contida no artigo 478 do Código Civil, possui uma aplicação mais restrita atualmente, impedindo a revisão contratual por conta de oscilação de preços no mercado e pragas de conhecimento geral do produtor rural.

Lucas Rampelotto é estagiário da TMB Advogados e membro do Grupo de Estudos “Liga de Direito e Agronegócio” da PUC Campinas.

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